segunda-feira, 13 de abril de 2009

Crônica da morte que dá a vida


Crônica da morte que dá a vida

Valéria Gomes Lopes

O coração de Cristo. A dor de Cristo. O sacrifício de Cristo. No coração do Rio de Janeiro, o pedido de segui-Lo, de amá-Lo. O pedido de ser perdoado. Às 8h, o sol iluminava os rostos da Igreja que se reunia em frente à Igreja de Santa Luzia, a que teve os olhos arrancados por amor a Cristo. Contudo, antes, Ele já amara Luzia , como amara a cada um dos que chegavam para a memória de Sua Paixão.

Os que carregavam a Cruz se revezavam, Cirineus que acompanhavam os passos do Nazareno. Duzentas pessoas. Poucas para uma cidade de seis milhões de habitantes. Duzentas que eram arrastadas por Ele que carregava os seis milhões. A cada estação, a leitura do Evangelho: “Guarda a tua espada na bainha. Não vou beber o cálice que o Pai me deu?”. Em seguida, Péguy nos fazia entrar, viver os Mistérios dAquele que “fora um bom operário/ um bom carpinteiro/ [...]/bem obediente a pai e mãe/ [...] Até o dia em que começara a sua missão”.

Nessa Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, nessa Sexta-Feira Santa que santifica cada minuto de todos os dias, a Igreja caminha. Naquele dia em que Ele fora esbofeteado, e “introduzira a desordem/ [...]a maior ordem que houve no mundo/ a única ordem”. Um coro humano fazia ressoar, diante do Monumento aos Mortos da 2ª Guerra Mundial, um canto suave, porém lancinante: “meu amigo me traiu com o sinal de um beijo[...]/ seria melhor para aquele homem que nunca tivesse nascido”. Cristo morrera por aqueles mortos. Dignificou a morte daqueles mortos. Dignifica, agora, a vida de todos os vivos.

A beleza dos cantos. A beleza do lugar. O tempo da beleza, da maior Beleza. Da única Beleza. Um povo que caminha por causa da Beleza. Porque a beleza se fez carne e se faz carne no povo que caminha outra vez até o Gólgota: “Não pertences também tu aos discípulos desse homem?” “Não!” Um não que ressoava da boca dos que passavam e não paravam. E os guardas acompanhavam; às vezes silenciavam como silenciavam todos; às vezes conversavam como conversavam todos; às vezes se distraíam como todos os outros; mas ninguém podia negar a visão da Cruz que se impunha diante de todos.

Uma voz masculina clamava: “Misericórdia, misericórdia, misericórdia”. A Igreja repetia: “Misericórdia”. Ao mesmo tempo, outros gritavam: “Crucifica-o! Crucifica-o!” Pilatos mais uma vez repetia: “Levai-o vós mesmos para o crucificarem, pois eu não encontro nele crime algum”. E Pèguy perguntava: “Os amigos amavam-no tanto quanto o odiavam os inimigos?/ Seu pai o sabia”. O Aterro do Flamengo nunca fora como nesse dia: ciclistas paravam para rezar; corredores seguiam seu caminho fazendo o sinal da cruz; banhistas paravam na passarela para olhar a cruz e ouvir o coro: “Ele é o teu bom Jesus,/ que te dará o seu amor/ Ele é Jesus, sim, Ele é Jesus,/ Ele é o teu bom Jesus”. Essa é a revelação pela qual ninguém consegue passar indiferente: um ônibus para e, dentro dele, alguém muda de lugar ,enquanto o ônibus segue o seu caminho, e fica olhando pelo vidro de trás, como se quisesse ficar mais perto da cruz.

Com o povo do Rio, um pedacinho do povo de São Paulo: Cleuza, Marcos e Quitéria chegaram conosco ao Outeiro da Glória. Aos pés de Nossa Senhora da Glória, cantamos a vitória alcançada pela Cruz de Cristo. Enfim, do alto do Outeiro, junto com os amigos do mundo inteiro, a proclamação de uma certeza: “Quem não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não nos haverá de agraciar em tudo junto com Ele?”. Por isso, mesmo no silêncio da grande noite, a carícia do Nazareno sustenta a esperança do mundo.

Publicado a Pedido Walter ( Movimento Comunhão e Libertação)